Representantes de comunidades atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão e integrantes da equipe jurídica que atua no processo contra a mineradora BHP, dona da Samarco, no Reino Unido, estiveram nesta sexta-feira (14) na COP30, em Belém, para celebrar a decisão histórica da Justiça britânica. A corte reconheceu a responsabilidade da mineradora pela tragédia que devastou cidades, territórios tradicionais e ecossistemas ao longo do Rio Doce. A sentença foi anunciada justamente no dia da visita, o que deu ao encontro um tom de simbolismo e emoção para os grupos presentes.
A decisão foi recebida como um marco para povos que lutam há quase uma década por reconhecimento, reparação e responsabilização. Thatiele Monique Estevão, representante do Quilombo Santa Efigênia, em Mariana (MG), lembrou que sua comunidade está entre as primeiras atingidas pela lama. Ela explicou que, mesmo após anos de pressão, as comunidades quilombolas seguem enfrentando dificuldades para serem reconhecidas de forma plena dentro dos processos de reparação.

Segundo Thatiele, o rompimento não destruiu apenas casas e lavouras, mas atravessou elementos essenciais da vida quilombola. “Nós passamos nove anos buscando esse reconhecimento enquanto povo tradicional atingido pelo rompimento da barragem de Fundão”, afirmou. Ela explicou que, embora parte das demandas tenha avançado com a repactuação, muitos quilombolas ainda seguem fora dos cadastros oficiais de indenização. Quando a gente fala dos povos tradicionais, falamos também de impactos sociais, econômicos e culturais. O rompimento atravessou nossos modos de vida, de ser e de fazer”, disse.
A liderança reforçou que o resultado é fruto de uma articulação coletiva e que a decisão emitida no Reino Unido envia um recado importante às grandes corporações que operam em territórios tradicionalmente ocupados.”É uma vitória muito significativa para nós. Esse resultado aqui na COP é simbólico, potente e forte, porque mostra que povos tradicionais seguem mobilizados para impedir que grandes empreendimentos entrem em nossos territórios, deixem devastação e finjam que está tudo bem, porque não está”, afirmou.
Thatiele também chamou atenção para o caráter contraditório da COP30, ao reunir povos vulnerabilizados e, ao mesmo tempo, setores empresariais que historicamente financiaram projetos responsáveis por impactos ambientais. “É contraditório falar de justiça climática enquanto as mineradoras que causam devastação ocupam lugares de destaque na conferência”, criticou.
Para ela, é urgente que os processos de transição energética e decisões tomadas em fóruns globais incluam as vozes de quem vive na linha de frente da destruição. “O acesso precisa ser democrático, e essas vozes precisam ser escutadas e respeitadas”, completou.
A comunicadora indígena Yrere Krenak, do povo Krenak, reforçou que o rompimento da barragem não apenas poluiu o Rio Doce, mas atingiu dimensões espirituais impossíveis de reparar completamente. Ela contou que o rio (chamado Atu no idioma Krenak) era o centro da vida religiosa, cultural e emocional da comunidade. “O nosso povo conversava com o Atu, era ele que curava nossas tristezas. Hoje não conversamos mais com o rio, e perdemos totalmente nossa vida espiritual com ele”, disse.

Yrere lembrou que tinha apenas 20 anos quando a lama chegou ao território e que, desde então, tradições foram interrompidas: os banhos, a pesca, os jogos tradicionais e até o uso de ervas medicinais que dependiam da saúde da bacia. “As nossas crianças não têm seu primeiro mergulho no rio, como sempre foi. A gente precisa procurar outro rio longe do território, mas não é o mesmo. A intimidade com o nosso rio se perdeu”, relatou.
Para ela, a interrupção de práticas culturais representa uma forma profunda de violência espiritual, difícil de ser compreendida por quem não compartilha da cosmologia indígena. “O homem branco não entende a relação que temos com a natureza. Para nós, o rio é como um pai, uma mãe, alguém que alimenta e cura”, completou.
O advogado Felipe Hotta, sócio da Pogust Goodhead e responsável pela interlocução com as vítimas nos últimos sete anos, destacou que esta é a primeira vez que uma corte aponta de forma direta a responsabilidade de uma empresa pela tragédia que completou dez anos em 2025. Para ele, isso representa um alívio, mas também o início de uma nova etapa no processo judicial. “Após 10 anos, essas comunidades podem finalmente dizer quem é o responsável pelo que aconteceu nas suas vidas”, afirmou.

Hotta explicou que a decisão abre caminho para que o cálculo das indenizações avance, tanto para comunidades indígenas e quilombolas quanto para municípios que também sofreram danos ambientais e socioeconômicos. “Agora está claro que a empresa é responsável. O próximo estágio será quantificar quanto cada atingido tem direito a receber pelos danos que sofreu”, disse.
Ele também ressaltou o impacto internacional da decisão, afirmando que ela estabelece um precedente crucial para responsabilização climática em escala global. “A decisão mostra que empresas sediadas em outros países podem, sim, ser responsabilizadas por danos ambientais extraterritoriais”, afirmou.
Para Hotta, receber essa notícia durante a COP30 é simbolicamente poderoso, já que o evento reúne justamente países e organizações que discutem justiça climática e responsabilidades históricas.
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