Grifes globais de luxo usam couro fruto de desmatamento ilegal no Pará, denuncia ONG - Estado do Pará Online

Grifes globais de luxo usam couro fruto de desmatamento ilegal no Pará, denuncia ONG

Investigação da ONG Earthsight expõe falhas na rastreabilidade de um grande frigorífico brasileiro ligadas a exportações de material de origem ilegal para a Europa.

Marcas de moda de prestígio internacional estão comprando couro de empresas que têm vínculos com fazendas de gado ilegais na parte mais desmatada da Amazônia, no estado do Pará, que será palco da COP30 em novembro. Esta é a conclusão do novo estudo da organização não-governamental britânica Earthsight, que analisou decisões judiciais, imagens de satélite, registros de embarques e se infiltrou em feiras do setor para conectar a cadeia de valor da marca americana Coach a um gigantesco matadouro brasileiro com histórico de compra de centenas de cabeças de gado criadas em áreas desmatadas ilegalmente, inclusive em terras indígenas.

De acordo com o estudo, esta empresa é a Frigol, um dos cinco maiores frigoríficos do país, com capacidade de abate de 2.400 cabeças de gado por dia em suas instalações no estado do Pará.No Brasil, não é incomum que o gado seja transferido de fazendas em terras desmatadas ilegalmente para fazendas legais antes de ser vendido para matadouros, ocultando sua verdadeira origem. O Ministério Público Federal está processando 33 fazendeiros e duas empresas, alegando que 47.200 cabeças de gado foram criadas ilegalmente na Terra Indígena Apyterewa, no Pará, lar do povo Parakanã.

A Earthsight conseguiu confirmar que 14 dos fazendeiros processados ​​pelo MPF venderam mais de 17.000 cabeças de gado para a Frigol nos últimos anos, o suficiente para produzir 425 toneladas de couro. No entanto, não foi possível determinar o número exato de bovinos de origem Apyterewa. Ao expor a cadeia de suprimentos da Coach, a investigação revela a necessidade de transparência na cadeia de produção do couro no Brasil. A marca tem como principal ponto focal pessoas da Geração Z, ou seja, consumidores excepcionalmente seletivos e com consciência ambiental.

Conhecida por suas bolsas de couro de luxo “acessíveis”, vendidas entre R$1.900 e R$3.800 as vendas dispararam 332% no ano passado, com um dos maiores crescimentos na Europa. A Coach não respondeu aos repetidos pedidos de comentário da Earthsight.

“Os consumidores de produtos de luxo esperam que os altos preços ofereçam alguma garantia de que não estejam contribuindo para o desmatamento ou a invasão de terras indígenas. Esta investigação mostra que essa confiança é equivocada. Até que as marcas de moda comecem a realizar uma auditoria adequada em suas próprias cadeias de suprimentos, elas não podem garantir que seus produtos estejam livres dessas ilegalidades”, afirma o líder da equipe da Earthsight para a América Latina, Rafael Pieroni.

Quase toda a perda recente da vegetação da Amazônia no Brasil é motivada pela pecuária, frequentemente ilegal. O estado mais afetado é o Pará, onde uma área quase duas vezes maior que Portugal foi queimada nas últimas duas décadas. Este cenário se contrapõe ao fato de que o Brasil se comprometeu a acabar com todo o desmatamento no país até 2030 e escolheu o Pará para sediar as negociações climáticas internacionais, a primeira COP a ser realizada em uma região de floresta tropical.

“Os esforços para aumentar a transparência e a rastreabilidade nas cadeias de suprimentos de gado são vitais e devem ser priorizados pelo governo. Por muito tempo, marcas e varejistas ocidentais falharam repetidamente em cumprir suas próprias metas, transferindo a responsabilidade de identificar danos em suas cadeias de suprimentos para esquemas de certificação deficientes”, reitera Pieroni.

Como ocorreA quase totalidade do couro exportado do Pará para a Europa tem como destino a Itália, incluindo as peles do matadouro suspeito. Parte desse produto vai para Conceria Cristina e Faeda, dois curtumes na região do Vêneto, onde é processado e rebatizado como couro italiano. Investigadores da Earthsight foram informados por um representante da Conceria Cristina que um comprador regular de seu couro brasileiro é a Coach.O curtume brasileiro Durlicouros, maior exportador de couro do Pará para a Europa, confirmou por escrito que compra couros da Frigol.

Examinando registros de exportação, a Earthsight estabeleceu que o curtume exportava 90% de todos os couros produzidos do Pará para a Itália entre 2020 e 2023, totalizando 14.726 toneladas. O volume de fornecimento da Frigol para Durlicouros não é público e ambas as empresas não esclareceram quando questionadas pela Earthsight.

Outros compradores de um ou de ambos os curtumes italianos são Chanel, Chloé, Hugo Boss, as marcas Fendi e Louis Vuitton da LVMH, bem como as marcas Balenciaga, Gucci e Saint Laurent do Kering Group. Todos disseram à Earthsight que não usam couro brasileiro, mas Fendi e Hugo Boss iniciaram investigações após tomarem conhecimento das descobertas da Earthsight.

A Chanel revelou que encerrou recentemente seu relacionamento com a Faeda, após perder a confiança em seu sistema de rastreabilidade. A Chloé foi a única marca a fornecer uma metodologia detalhada de rastreamento de couro à Earthsight. A Faeda afirmou que não forneceu couro brasileiro às marcas de moda. Conceria Cristina não respondeu aos pedidos de comentário da Earthsight.

A Coach, a Fendi, a Louis Vuitton e a Hugo Boss contam com um esquema de certificação de sustentabilidade chamado Leather Working Group. A certificação, no entanto, não exige que os curtumes rastreiem o gado até as fazendas onde ele foi criado, tornando o esquema cego a potenciais abusos no nível das fazendas. O grupo admitiu em um e-mail à Earthsight que sua certificação não é “uma garantia de status livre de desmatamento”.

Os curtumes podem obter a certificação de nível “medalha de ouro” sem rastrear o gado, mesmo até os matadouros. A Conceria Cristina e a Faeda são certificadas pelo padrão ouro. A Coach, a Fendi, a Louis Vuitton e a Hugo Boss planejam comprar a maior parte ou todo o seu couro de curtumes certificados, apesar das falhas conhecidas.

Histórico de irregularidadesNo ano passado, o Ibama multou a Frigol e outros frigoríficos pela compra de 18.000 cabeças de gado criadas em floresta amazônica desmatada ilegalmente nos estados do Pará e Amazonas. A Earthsight obteve documentos que confirmam que a Frigol havia comprado 3.643 cabeças de gado criadas ilegalmente em duas áreas de terras desmatadas onde a pecuária foi proibida. A empresa foi multada em aproximadamente R$2 milhões. Apesar disso, a Frigol continuou a comprar centenas de cabeças de gado de apenas uma das fazendas embargadas. A Earthsight analisou imagens de satélite para comprovar que não houve tempo para a recuperação da área. Em nenhum lugar do Brasil os povos indígenas sofreram com mais desmatamento do que no Pará. Os Parakanã lutam contra décadas de invasões de terras, com seis ataques com armas de fogo relatados apenas nos últimos seis meses. O frigorífico ligado à cadeia de suprimentos da Coach é acusado pelo Ministério Público Federal de comprar gado criado ilegalmente neste território.

Outra ONG expôs recentemente que uma fazenda que abastecia Frigol havia comprado vacas de sete fazendas ilegais em Apyterewa. A resposta à investigação da Earthsight está disponível aqui. “Para enfrentar de forma mais profunda o problema da pecuária ilegal em áreas como a Terra Indígena Apyterewa, é essencial envolver todos os elos da cadeia — desde os produtores até os frigoríficos e compradores. Isso significa criar regras mais claras e firmes, com punições para quem compra gado de áreas protegidas ou embargadas. Também é preciso melhorar a fiscalização. Uma forma de fazer isso é implementar a identificação individual do gado, começando por municípios com maior risco, como São Félix do Xingu, que tem o maior rebanho bovino do país. Assim, fica mais fácil saber de onde vem cada animal”, indica Camila Trigueiro de Lima, analista de pesquisa do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).

Nas últimas décadas, empresas ocidentais de bens de consumo deixaram um rastro de devastação nos biomas do mundo e uma série de compromissos fracassados ​​para limpar suas cadeias de suprimentos. Nos últimos anos, os políticos perceberam que confiar em medidas voluntárias dará poucos resultados no combate às crises climática e de biodiversidade, finalmente introduzindo leis que obrigam as empresas a agir.

Futuro mais seguro para a Europa

O Brasil é o terceiro maior exportador mundial de couro cru e a Itália é seu terceiro maior cliente. Os europeus em breve serão protegidos do desmatamento pelo Regulamento de Desmatamento da EU (EUDR – Regulamento sobre Produtos Livres de Desmatamento da União Europeia), que exige que as empresas comprovem que o couro e outras commodities que utilizam são “livres de desmatamento”.

A lei já deveria estar em vigor, mas foi adiada para 30 de dezembro de 2025 após intenso lobby. Esse atraso “perigoso” dá ao setor de couro mais tempo para continuar pressionando por sua exclusão, afirmou a Earthsight. Curtumes italianos fizeram lobby por uma exclusão no Parlamento Europeu no início de junho.

“Com a implementação da EUDR adiada para 30 de dezembro, as empresas não podem mais alegar que não tiveram tempo suficiente para cumprir os requisitos da regulamentação. A aplicação oportuna e adequada da EUDR será a única maneira de impedir que os consumidores europeus comprem, sem saber, produtos ligados ao desmatamento e a violações de direitos humanos no Brasil”, conclui Rafael Pieroni.