O Pará, o segundo estado mais negro do Brasil, possui uma história marcada por resistência, contribuições culturais e apagamentos sistemáticos. Com 69,9% da população se identificando como parda, a miscigenação no estado reflete traços profundos das heranças negras e indígenas. Porém, apesar dessa identidade pulsante, o Pará ainda é marginalizado em projetos de reparação histórica e na valorização de sua cultura afrodescendente.
Negação da Presença Negra na Amazônia
A invisibilidade da população negra na história da Amazônia é uma questão recorrente, como aponta a professora e pesquisadora Joana Machado:
“O primeiro campo dessa invisibilidade é a ideia de que não existe negro na Amazônia. Quando se fala em Amazônia, na maioria das vezes, o que as pessoas elaboram é um espaço de floresta, sem gente, sem sociedade, sem cultura, nem em relação às populações originárias, muito menos à população negra”, afirma.
Locais icônicos como o Ver-o-Peso, que foram espaços de desembarque de negros escravizados, hoje são exaltados apenas como símbolos culturais e turísticos, ignorando o sofrimento e a resistência que ali ocorreram. Benevides, cidade reconhecida por sua participação abolicionista, segue esquecida, relegada a notas de rodapé na história paraense.
Segundo Jarbas Vasconcelos, secretário da Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos:
“Os espaços culturais e de luta da diáspora africana foram apagados da história do Pará. Não preservamos quilombos ou mocambos, enquanto ainda exaltamos uma Belém branca e europeia, esquecendo que a Amazônia é negra.”
Belle Époque: Um projeto de apagamento
O apagamento histórico também abrange as contribuições culturais negras no estado. Segundo o professor de história Elias Vasconcelos:
“Crispim do Amaral, um pintor negro, participou das pinturas do Teatro da Paz. Anos depois, sua obra foi atribuída a um pintor branco francês, apagando sua contribuição à história cultural de Belém.”
Esse episódio não é isolado, mas parte de um projeto maior de branqueamento histórico, especialmente na época da Belle Époque, que exaltou a arquitetura e cultura europeias em Belém, enquanto afastava as expressões culturais negras e indígenas ao esquecimento.
Joana Machado, professora – Seduc/PA, reforça como essas dinâmicas afetam a autoestima e a percepção histórica da juventude negra: “É preciso tornar essas histórias objeto de conhecimento para mudar a lógica de entender o negro. Que negros hoje, adolescentes, jovens, adultos, entendam que a nossa história não começa na escravidão. A nossa história tem um lugar de existência e elaboração, que é a África.”
A força das mulheres negras em Belém
A história da resistência negra em Belém também é marcada pela força das mulheres. Grupos como as Taieiras, Estrela do Oriente e as Irmãs de São Raimundo foram fundamentais na organização cultural, econômica e abolicionista. Essas mulheres, muitas delas lavadeiras, formavam irmandades que funcionavam como verdadeiros sindicatos.
Como explica Joana Machado, “Essas mulheres eram fundamentais para a organização cultural, econômica e abolicionista. Elas organizavam festas, compravam a liberdade de seus filhos e articulavam a comunidade.” Apesar de sua importância, essas histórias continuam sendo negligenciadas na memória coletiva da cidade.
Racismo Ambiental e Violência
As desigualdades estruturais e o racismo ambiental são alguns dos reflexos do passado escravocrata que persistem no Pará. Muitas comunidades negras vivem em áreas alagáveis e periféricas, com acesso limitado a serviços básicos, enquanto enfrentam altos índices de violência, onde segundo o Instituo Fogo Cruzado, 66% dos mortos por violência armada em Belém são negros.
Além disso, o estado continua sendo invisibilizado em projetos de reparação histórica no Brasil. Apesar das demandas da ONU para que o país implemente políticas de reparação para as populações negras, o Norte, incluindo o Pará, segue fora do radar nacional.
Reconhecer para Transformar
O Pará é um reflexo vivo da resistência e da riqueza cultural negra no Brasil. Reconhecer sua história é essencial para transformar o presente e garantir que as futuras gerações se orgulhem de suas raízes.
A luta por visibilidade e reparação não é apenas um resgate histórico, mas um movimento político necessário para superar séculos de apagamento e desigualdade. Como conclui a doutora em Educação, Joana Machado:
“Se a gente pode falar de cicatriz do apagamento, essa invisibilidade é a própria cicatriz, porque ela não é só uma questão de não falar no assunto, ela demarca a não existência, a não existência, como se fosse possível isso. Então, como é que pode apagar isso da história? Da história da formação da sociedade paraense e da história atual.”
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