No coração do Parque Estadual do Utinga Camillo Vianna, em Belém, pedaços de ferro adormecidos sob a vegetação ganharam nova vida. Pesquisadores e exploradores urbanos localizaram trilhos que estavam soterrados por décadas, revelando um fragmento esquecido da modernização paraense do início do século XX.
As estruturas pertencem ao sistema francês Decauville, conhecido por sua leveza e adaptabilidade a terrenos instáveis. Especialistas acreditam que os trilhos serviram para transportar materiais durante a construção do Canal do Água Preta, projeto do engenheiro Francisco Bolonha, responsável por abastecer a capital.
Embora a descoberta recente traga novidade, pistas sobre esses caminhos de ferro já circulavam em relatos antigos. Em 1929, um livro publicado em Berlim narrava a experiência de uma viajante que descia inadvertidamente em um pequeno vagão camuflado pela mata. O que parecia um episódio literário retorna agora em forma de vestígio concreto no Utinga.

A redescoberta passo a passo
O gestor ambiental Diego Barros, do Ideflor-Bio, liderou a busca. O interesse nasceu durante o apoio à gravação de um documentário sobre uma pesquisadora alemã que percorreu a Amazônia nos anos 1950. “A fagulha veio quando li os relatos dela sobre trilhos no Utinga. Combinando esse material com meu conhecimento sobre o Parque e mapas antigos, comecei a buscar vestígios. Foi um processo longo, de mais de um ano, até localizarmos os primeiros fragmentos e, depois, trechos inteiros em surpreendente estado de conservação”, contou.
A investigação avançou em três fases: um primeiro achado sem confirmação, um segundo fragmento marcado por ferragens da empresa americana Byton e, finalmente, a identificação de trechos inteiros preservados. O trabalho ganhou precisão graças ao acervo fotográfico do engenheiro paraense Paulo Augusto Gadelha Alves, cedido por sua filha, que indicou a localização dos trilhos submersos.
Multidisciplinaridade em ação
Além de técnicos do Ideflor-Bio, o estudo reuniu nomes como Haroldo Baleixe e Fernando Marques, do Laboratório Virtual da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA. A pesquisa envolveu áreas diversas, da arqueologia à psicologia, reforçando a dimensão plural dessa redescoberta.
Para Barros, o achado não se limita ao valor material. “Os trilhos não são apenas peças de ferro oxidado, mas marcas de um tempo em que a Amazônia experimentava inovações e enfrentava desafios logísticos inéditos, incorporando tecnologias globais em plena floresta tropical”, destacou.

Patrimônio natural e cultural
Criado para proteger os mananciais que abastecem Belém e sua região metropolitana, o Parque do Utinga agora assume também o papel de guardião da memória tecnológica da cidade. O presidente do Ideflor-Bio, Nilson Pinto, resume o impacto da descoberta: “A cada passo dado no Utinga, encontramos novas formas de compreender nossa relação com a floresta e com a cidade. A descoberta desses trilhos mostra que o Parque é também um guardião da memória. Cabe a nós preservar esse legado para que as futuras gerações possam conhecer e se orgulhar da história que atravessa a Amazônia”.
Próximos passos
A Gerência da Região Administrativa de Belém do Ideflor-Bio avalia como preservar e sinalizar os achados. A proposta é criar um circuito histórico no parque, unindo ecoturismo, educação ambiental e valorização do passado. O visitante, assim, poderá percorrer trilhas que revelam não apenas a biodiversidade amazônica, mas também um elo oculto da modernização que marcou o Pará no século passado.
Deixe um comentário