Sabedoria da terra: agricultores do Pará ensinam na universidade a restaurar a Amazônia - Estado do Pará Online

Sabedoria da terra: agricultores do Pará ensinam na universidade a restaurar a Amazônia

Formação itinerante no leste paraense cria rede de "restauradores" que une a base camponesa à universidade para propor soluções climáticas e de segurança alimentar

Foto: Ianca Moreira

O nordeste paraense, uma das regiões mais degradadas da Amazônia, enfrenta um desafio urgente: solos exaustos e perda de biodiversidade. Mas uma revolução silenciosa vem do próprio campo. 

Agricultores familiares estão mostrando que plantar árvores junto à roça, as chamadas florestas alimentares, pode regenerar o solo, garantir renda e inspirar o ensino superior.

As florestas alimentares da Amazônia

Nos arredores de Belém, dois modelos de produção se destacam. Um, mais comercial, voltado à exportação de cacau e açaí, usa poucas espécies e depende de insumos químicos. O outro, das agroflorestas ultradiversificadas, mantidas por povos indígenas, quilombolas e pequenos agricultores, abriga até 70 espécies por hectare, entre frutíferas, medicinais e madeireiras.

Esses agricultores associam árvores que alimentam, curam e protegem o solo. “Alguns têm um conhecimento muito profundo das espécies, mas também das associações benéficas entre elas”, explica Émilie Coudel, pesquisadora do Cirad.

 “Eles plantam árvores para atrair abelhas nativas e aumentar a polinização das espécies frutíferas, ou outras árvores que repelem insetos indesejáveis. É um conhecimento transmitido há gerações, que a ciência agora começa a reconhecer.”

Quando a universidade vai ao campo

Foi para aprender com essa sabedoria que nasceu o curso Refloramaz (Restauração ambiental e sistemas agroflorestais na Amazônia) uma parceria entre UFPA, UFRA, Embrapa e Cirad, com apoio da União Europeia. Em vez de levar os agricultores ao campus, o curso foi até as comunidades do leste do Pará, transformando os roçados em laboratórios vivos.

“A formação valorizou o papel dos agricultores familiares e dos povos da Amazônia, tanto quilombolas quanto indígenas, nas ações de restauração florestal”, explica Livia Navegantes, professora da UFPA.

Diálogo de saberes

Nas turmas, agricultores, técnicos, professores e líderes comunitários aprenderam lado a lado. “Cada região tem sua forma de plantar. A troca de conhecimentos foi excelente dentro do nosso grupo”, conta Justiniano, agricultor de Paragominas.

Ele lembra que os universitários ajudavam com termos técnicos e registros, mas também aprendiam com a prática. “Os mais experientes ensinaram coisas que só quem vive no campo sabe: como preparar os pés de bananeira, como usar o margaridão como adubo, e até como fazer as mudas de mandioca germinarem mais rápido.”

Uma rede de restauradores

Mais que um diploma, o Refloramaz criou uma rede de restauradores. “Nosso objetivo ia além do compartilhamento de conhecimentos”, diz Émilie Coudel. “Queríamos conectar líderes que já tinham propostas, mas não se conheciam. e dar a eles força coletiva para dialogar com o poder público.”

A agricultora Miquele Silva, do Movimento Feminista das Mulheres do Nordeste do Pará (MMNEPA), conta que a formação teve impacto direto em sua atuação.

 “Sou membro do MMNEPA, e a formação me ajudou nessa proposta de diálogo com as mulheres do movimento, para garantir que as práticas dos sistemas agroflorestais permaneçam na minha região, mas também se espalhem para os territórios de outras mulheres.”

Como fruto desse processo, nasceu o Fórum Popular de Agrofloresta da Amazônia, que busca discutir temas como regularização fundiária, fortalecimento de mercados locais e acesso a financiamento.

Ciência cidadã

A experiência do Refloramaz mostra que as respostas à crise climática não virão apenas dos laboratórios, mas da união entre saberes. “Não existe uma resposta única, e não se pode esperar uma resposta apenas da ciência”, resume Livia Navegantes. “É preciso uma ciência feita com as comunidades, uma ciência cidadã.”

Esse espírito também marcou a fala de Katia Silene Tonkyre, primeira mulher cacique do povo indígena Akratikatejé, durante o seminário final do curso:

 “Hoje trazemos um pouco da nossa experiência de vida, de partilha, e também viemos em busca de novos conhecimentos. Vamos pegar o que é bom como modelo para investir em nosso território. Estamos aqui para nos enriquecermos mutuamente. Se unirmos nossas forças, venceremos.”

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