Na manhã desta quarta-feira (20), o Pará e o Brasil se despediram de uma das figuras mais emblemáticas na defesa dos direitos humanos. Dom José Luís Azcona Hermoso, bispo emérito da Prelazia do Marajó, faleceu aos 84 anos em Belém, vítima de complicações decorrentes de um câncer no pâncreas. Sua morte encerra uma trajetória de mais de três décadas dedicadas à proteção dos mais vulneráveis no Arquipélago do Marajó.
De Pamplona ao Marajó: o chamado para a missão
Nascido em Pamplona, Espanha, em 28 de março de 1940, Dom Azcona ingressou na ordem dos Agostinianos Recoletos e foi enviado ao Brasil em meados da década de 1980. Em 1987, o Papa João Paulo II o nomeou bispo titular da Prelazia do Marajó, cargo que ocupou até 2016.
Sua chegada ao Marajó marcou o início de uma luta que iria definir sua vida. Enfrentando condições precárias de infraestrutura, ausência do poder público e uma das maiores taxas de exploração sexual de crianças do Brasil, ele rapidamente se destacou como uma liderança comprometida não apenas com a espiritualidade, mas com a dignidade humana.
Uma luta contra a exploração sexual e o tráfico humano
Dom Azcona foi pioneiro na denúncia de redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Marajó. Ele revelou o envolvimento de famílias e autoridades locais em casos de abuso e tráfico de pessoas, incluindo o envio de mulheres e crianças para a Guiana Francesa.
Essas denúncias o tornaram alvo de ameaças de morte, levando seu nome a figurar entre os líderes religiosos mais perseguidos do Brasil. Apesar disso, recusou proteção policial, afirmando que sua fé o sustentava. “O pensamento da morte me acompanha sempre, mas não perdi nem um minuto de sono”, declarou em entrevista.
Seu trabalho foi fundamental para a criação da CPI da Pedofilia no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa do Pará, entre 2009 e 2010. As investigações expuseram redes criminosas e trouxeram à tona uma realidade alarmante que antes era silenciada.
Episódios marcantes: da violência ao perdão
Em maio de 2016, Dom Azcona viveu um episódio que exemplifica sua humanidade. Durante uma procissão em Soure, ele foi atacado por um búfalo e sofreu graves ferimentos, incluindo fraturas em vértebras. Apesar das dores intensas e de meses de recuperação, ele demonstrou compaixão ao retirar da prisão o dono do animal, afirmando que este dependia do búfalo para sobreviver.
Esse gesto de perdão e solidariedade reforça o caráter pastoral de Dom Azcona, que sempre priorizou o cuidado com as pessoas, mesmo diante de adversidades.
Reconhecimento internacional e legado no Marajó
Por seu trabalho incansável, Dom Azcona ganhou reconhecimento internacional como símbolo de luta contra o tráfico humano e a exploração infantil. Em 2008, foi incluído na lista de líderes católicos ameaçados de morte no Pará, e, mesmo assim, continuou suas atividades.
No Marajó, ele enfrentou a ausência de políticas públicas, o desemprego alarmante, a desestruturação familiar e o abandono das autoridades. Ele dizia que “os cinco primeiros artigos da Constituição não se aplicam no Marajó” e alertava que, sem mudanças, a região estaria fadada ao colapso social.
Despedida e homenagens
Desde junho deste ano, Dom Azcona lutava contra um câncer no pâncreas. Durante sua internação, recebeu a visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré, em um momento de fé e conforto espiritual.
A morte de Dom Azcona foi lamentada por diversas lideranças políticas e religiosas. O governador do Pará, Helder Barbalho, decretou luto oficial de três dias e destacou seu legado como “um símbolo de luta pelos direitos humanos no Marajó”. O prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues, o descreveu como “um defensor incansável das crianças e adolescentes do Marajó”.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emitiu nota reconhecendo sua trajetória como “um legado de amor, sabedoria e compaixão com os mais pequeninos”.
O corpo será velado na Paróquia São José de Queluz, em Belém, antes de ser levado para Soure, onde será sepultado, cumprindo seu desejo de repousar junto ao povo que tanto amou e protegeu.
Um testemunho que transcende o tempo
Dom Azcona foi mais do que um líder religioso; foi uma voz que ecoou pelos direitos humanos em uma das regiões mais desassistidas do Brasil. Sua coragem, fé e compaixão continuarão a inspirar aqueles que lutam por justiça e dignidade.
O Marajó perde um pastor, mas seu legado permanece como um farol de esperança para aqueles que acreditam em um futuro mais justo e humano.
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