Editorial - Caso Gerson: doença mental no Brasil é sofrimento que o Estado não vê - Estado do Pará Online

Editorial – Caso Gerson: doença mental no Brasil é sofrimento que o Estado não vê

Tragédia expõe falhas históricas no atendimento em saúde mental e revela um sistema que responde com punição onde deveria haver cuidado

Reprodução/Redes Sociais

A morte de Gerson, após invadir a jaula de uma leoa em João Pessoa, reacendeu um debate necessário: o Brasil trata sofrimento psíquico com abandono, improviso e punição. O episódio expôs falhas profundas na rede de atendimento em saúde mental e levantou uma pergunta incômoda: quantas tragédias poderiam ser evitadas se o cuidado viesse antes do colapso?

Um país adoecido

Dados da Organização Mundial da Saúde estimam que mais de um bilhão de pessoas no mundo convivam com algum transtorno mental. No Brasil, o cenário é expressivo: quase um terço da população relata sintomas de ansiedade, depressão ou outros quadros psíquicos. Estudos epidemiológicos mostram que a prevalência de depressão ao longo da vida no país alcança cerca de 15% da população. Em números absolutos, isso representa milhões de brasileiros vivendo com sofrimento mental significativo.

Mesmo diante dessa realidade, grande parte dessas pessoas nunca recebeu diagnóstico, acompanhamento psicológico ou atendimento psiquiátrico. O estigma, a falta de estrutura pública e a ausência de políticas consistentes transformam o sofrimento em silêncio.

O que existe e o que falta

A estrutura pública de cuidado está organizada na Rede de Atenção Psicossocial, formada por serviços como CAPS, unidades de acolhimento, ambulatórios especializados e leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Nos últimos anos, houve aumento da demanda e da procura por atendimento. Ainda assim, a rede é insuficiente. Em muitas cidades, o acesso é limitado e há longas filas de espera, falta de especialistas e atendimentos esporádicos.

Especialistas apontam que políticas anteriores reduziram drasticamente o número de leitos psiquiátricos sem ampliar, na mesma proporção, a rede territorial de cuidado. Em regiões periféricas e no interior do país, o atendimento especializado é raro ou inexistente.

Quando o cuidado não chega

A trajetória de Gerson mostra o que acontece quando o sistema falha. Ele passou por instituições socioeducativas, por abordagens policiais e por episódios de vulnerabilidade profunda. Houve recomendações formais de acompanhamento psiquiátrico ao longo de sua vida, mas nada foi implementado de forma contínua. O histórico revela um padrão nacional: jovens em sofrimento mental são monitorados pela segurança pública antes de qualquer contato efetivo com a saúde.

Uma política de saúde mental que precisa mudar

Reverter esse cenário exige mais do que discursos. É preciso ampliar serviços, estruturar equipes multidisciplinares, criar atendimento de emergência em saúde mental, integrar assistência social, educação e segurança pública e tratar o sofrimento psíquico como questão de saúde e não de controle social.

Também é necessário enfrentar o estigma que transforma doença mental em fraqueza e afasta quem mais precisa de ajuda. Pessoas que sofrem não precisam de julgamento. Precisam de cuidado, tratamento e acolhimento.

O alerta que fica

A morte de Gerson não é um acidente isolado. É um aviso sobre o que acontece quando o Estado fecha os olhos para o sofrimento mental. Enquanto a saúde mental continuar a ser tratada como assunto secundário, outras vidas seguirão expostas ao abandono, à violência e à invisibilidade.

O Brasil precisa agir antes que mais histórias terminem como a dele: não como um caso, mas como uma consequência.

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