Belém voltou a ser o epicentro do debate climático mundial. A Cúpula dos Povos, que reuniu mais de 70 mil representantes de movimentos sociais, povos tradicionais, trabalhadores urbanos e rurais, juventudes e coletivos de todo o mundo, apresentou no último sábado (16) sua declaração final. Um documento extenso e incisivo cobra transformações profundas nas políticas ambientais globais e aponta críticas diretas ao atual modelo de governança climática.
A publicação ocorre às vésperas de uma das fases mais intensas da COP30 e deve influenciar a atmosfera política da conferência. O texto reúne diagnósticos, denúncias e um conjunto de propostas que os movimentos esperam ver refletidos nas negociações oficiais.
Capitalismo, desigualdade e crise climática
A declaração afirma que o capitalismo é a causa estrutural da emergência climática, responsabilizando corporações multinacionais dos setores de mineração, energia, agronegócio, armas e tecnologia por impulsionar destruição ambiental e aprofundar desigualdades. Segundo o documento, esse modelo econômico “capturou” governos e instituições públicas, inviabilizando respostas eficazes.
Racismo ambiental e impacto nas periferias
Os movimentos denunciam que populações periféricas e racializadas – mulheres, jovens, povos originários, comunidades quilombolas e ribeirinhas – estão na linha de frente dos impactos dos eventos climáticos extremos. Pedem políticas urgentes de adaptação, infraestrutura e reparação ambiental.
Rejeição às falsas soluções
A Cúpula critica mecanismos de mercado, como créditos de carbono e programas financeirizados, apontando-os como “falsas soluções” que desviam o foco de transformações estruturais e beneficiam grandes empresas.
Governança global sob questionamento
O texto declara que o atual modelo de multilateralismo climático fracassou. As conferências internacionais, segundo os movimentos sociais, acumulam promessas não cumpridas enquanto eventos extremos se multiplicam e corporações privadas ampliam seu poder político.
Territórios no centro da agenda
A demarcação e proteção de terras indígenas e tradicionais aparece como prioridade absoluta. O documento exige desmatamento zero, fim das queimadas criminosas e restauração de áreas degradadas, um dos temas mais sensíveis nas negociações da COP30, sobretudo em relação à Amazônia.
Soberania alimentar e agroecologia
Os movimentos defendem a reforma agrária popular e o incentivo à agroecologia como alternativas reais para combater a crise climática e promover segurança alimentar. Para eles, o agronegócio segue como pilar de destruição ambiental.
Cidades sustentáveis e periferias vivas
A declaração exige políticas urbanas voltadas a saneamento, moradia, transporte público gratuito, arborização e regularização fundiária, com foco no enfrentamento do racismo ambiental e na adaptação climática das cidades.
Fim das guerras e desmilitarização
Um dos pontos mais politicamente sensíveis do texto pede o redirecionamento dos gastos militares mundiais para ações de mitigação, adaptação e reparação climática. A Cúpula também condena conflitos armados, especialmente na Palestina, relacionando-os à destruição ambiental.
Reparação e responsabilização
O documento cobra punição a empresas e governos responsáveis por crimes socioambientais, incluindo casos ligados à mineração, barragens e combustíveis fósseis. Defende ainda mecanismos de compensação justa às populações atingidas.
Justiça feminista e valorização do cuidado
A Cúpula dos Povos coloca o trabalho de cuidados – majoritariamente realizado por mulheres – como eixo da economia da vida e pede que Estados reconheçam e valorizem este trabalho como essencial para uma transição justa.
Transição energética popular e fim dos fósseis
Movimentos exigem o fim da exploração de combustíveis fósseis e pedem que a COP30 avance na criação de mecanismos globais de não proliferação fóssil. Para eles, a energia deve ser tratada como um bem comum.
Taxação de ricos e corporações
A proposta inclui criação de fundos públicos alimentados principalmente pelas grandes fortunas e corporações que mais contribuem para a destruição ambiental. A medida, defendem, é essencial para financiar a transição energética justa.
Reforma do financiamento climático
O texto afirma que FMI e Banco Mundial não devem gerir recursos climáticos internacionais, por aprofundarem desigualdades entre Norte e Sul. A Cúpula propõe mecanismos democráticos de financiamento e o reconhecimento da dívida socioambiental histórica do Norte Global.
Proteção a defensores ambientais
A declaração pede que governos reforcem a proteção a lideranças e comunidades ameaçadas, ressaltando o papel de tratados como o Acordo de Escazú.
Novo instrumento internacional vinculante
Os movimentos defendem a criação de um tratado global que regulamente atividades de empresas transnacionais e garanta direitos às populações afetadas, incluindo a implementação plena da Declaração dos Direitos Camponeses.
Propostas apresentadas pela Cúpula dos Povos
- Enfrentar todas as falsas soluções de mercado e afirmar que ar, florestas, águas, terras, minérios e energia são bens comuns e não mercadorias.
- Garantir participação e protagonismo dos povos na construção das soluções climáticas, com reconhecimento pleno dos saberes ancestrais.
- Demarcar e proteger terras indígenas e territórios tradicionais e assegurar políticas de desmatamento zero, restauração ecológica e recuperação de áreas degradadas.
- Concretizar a reforma agrária popular e fortalecer a agroecologia como caminho para soberania alimentar e combate à fome.
- Enfrentar o racismo ambiental e construir cidades justas, com políticas de moradia, saneamento, regularização fundiária, transporte público digno e acesso à água e ao verde.
- Assegurar participação popular na formulação das políticas climáticas urbanas e barrar a mercantilização da vida nas cidades.
- Defender o fim das guerras e da militarização e destinar recursos hoje voltados ao setor bélico para reparação de regiões atingidas pela crise climática.
- Exigir reparação integral por perdas e danos causados por mineração, combustíveis fósseis, barragens e desastres ambientais, com responsabilização das empresas.
- Valorizar o trabalho de cuidado e reconhecer sua centralidade para sustentar a vida humana e não humana, garantindo autonomia e justiça feminista.
- Construir uma transição energética justa, popular e soberana, com proteção aos territórios e superação da pobreza energética.
- Defender o fim da exploração de combustíveis fósseis e criar mecanismos que impeçam sua expansão, especialmente na Amazônia e em ecossistemas sensíveis.
- Taxar grandes corporações e grandes fortunas e garantir financiamento público para a transição justa, responsabilizando os setores que mais lucram com a crise.
- Rejeitar modelos de financiamento climático que reforçam desigualdades e defender estruturas transparentes e democráticas que reconheçam a dívida socioambiental do Norte global.
- Fortalecer a proteção a defensores e defensoras de direitos humanos e ambientais e enfrentar a criminalização dos movimentos sociais.
- Criar instrumentos internacionais juridicamente vinculantes para responsabilizar empresas transnacionais por violações de direitos humanos e ambientais e implementar plenamente os direitos camponeses como pilar da governança climática.
Um recado direto à COP30
A mensagem da Cúpula dos Povos é clara: a crise climática não será resolvida com ajustes marginais ou soluções de mercado. Para os movimentos, apenas mudanças estruturais – econômicas, políticas e culturais – garantirão o futuro da vida no planeta.
Com uma declaração extensa e politicamente contundente, Belém se consolida não apenas como sede da COP30, mas como palco de um movimento global que exige coragem, justiça e ação real diante do colapso climático.
A declaração final da Cúpula dos Povos chega à COP30 como um chamado à ousadia – e um lembrete de que a transição ecológica só será legítima se for construída com e para aqueles que mais sofrem os impactos do colapso climático. Belém firma-se hoje na história como o principal local de debates sobre o futuro da humanidade.
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