O incêndio no Lixão do Aurá, os prejudicados e as doações do Círio

Presente em incêndios de lixões e ativista de campanhas solidárias que beneficia famílias de áreas afetadas por crimes ambientais, o fotojornalista João Paulo Guimarães traz um relato nu e cru sobre a realidade dos lixões existentes na Região Metropolitana de Belém.

Bombeiro no Incêndio no lixão do Aurá
Militar do Corpo de Bombeiros assiste o fogo no lixão do Aurá.

Por João Paulo Guimarães*

Ao entrar na estrada para o lixão do Aurá, no sábado, dia 30 de setembro, eu já sinto o cheiro característico que conheço há anos. É o cheiro dos lixões pegando fogo. O céu está vermelho e não há ninguém nas ruas, quando passo de carro às 22h. Fotografar queimadas é uma coisa triste, mas fotografar lixões pegando fogo é pior. 

O que está em chamas é o trabalho árduo de quem está acostumado ao sofrimento de uma vida sem opções. É dez vezes mais triste ver o céu vermelho. Chego no lixão e as pessoas que me recebem estão em silêncio e de luto pela perda do produto de um trabalho de semanas na busca por recicláveis.

Não se passou nem um ano do último grande incêndio no Aurá. O último foi no dia 17 de Dezembro de 2022 e o alarde era de que esse incêndio anterior seria o maior incêndio da história do bairro cuja população é criminalizada e culpabilizada pelo poder público e pelas grandes mídias da capital e do estado pela sua situação de miséria e pobreza social. Uma “bomba atômica”, como é chamado. 

“Essas pessoas não deviam estar lá”, dizem autoridades de órgãos ambientais de Belém e Ananindeua. Na verdade ambas gestões brincam de ping pong com a vida de milhares de pessoas que dependem de políticas públicas básicas, mas que nunca chegam, como asfalto, iluminação pública ou água que é um direito básico previsto pela constituição e pela Organização das Nações Unidas. As gestões de Ananindeua e Belém brincam com a ignorância de uma população que desconhece seus direitos.

As temperaturas do planeta estão chegando a níveis que já causam insegurança para as populações mais carentes das cidades, principalmente as cidades mais quentes do planeta como Belém do Pará, que não oferecem estrutura de cidade para os bairros de baixada ou periféricos. Os oceanos estão esquentando e batendo níveis recordes o que influencia nos rios do país e sucessivamente na ictiofauna que está morrendo e sofrendo com essas mudanças causadas pela fome desenfreada por combustíveis fósseis. 

A produção de poluição por monóxido de carbono não diminuiu nos últimos anos e as temperaturas que chegam até 46 graus, com sensação térmica de até 55 graus, influenciam diretamente no corpo humano que não consegue regular a própria temperatura e, por consequência, a transpiração, regulador da temperatura interna do corpo, que vai deixando de ser eficaz causando problemas de saúde naqueles que não têm à disposição um aparelho de ar condicionado e muitas vezes nem um simples ventilador.

O acesso à cidade e acesso às políticas públicas e sociais destinadas para as populações carentes já eram objetivos difíceis para as gestões governamentais tornarem estas questões uma prioridade, principalmente populações periféricas e que dependem de lixões como o Lixão do Aurá, na fronteira de Belém e Ananindeua, que em 2022 pegou fogo colocando em risco a sobrevivência dos catadores de recicláveis em um espaço que é visto como inexistente pelo poder público.

O Lixão do Aurá não movimenta milhões por ano como o aterro comandado pela Guamá Resíduos, mas continua a receber lixo doméstico do entorno das cidades de Ananindeua e Belém. Há uma balança para a pesagem do lixo que é da prefeitura e do Governo do Estado instalada no local, que gera participação dos lucros de quem precisa e depende da coleta de recicláveis como única fonte de renda para sua sobrevivência. Ou deveríamos adotar o termo Subvivência, como termo adequado para a população do Bairro de Santana do Aurá?

Em Belém do Pará há um lixão chamado Lixão do Aurá que recentemente pegou fogo. Uma média de 600 pessoas por dia transitam no lixão que é chamado de Bota Fora. O Lixão fica na comunidade do Bairro Santana do Aurá. As pessoas estão vivendo sob uma nuvem constante de fumaça tóxica que vem da combustão dos gases produzidos pelo lixão que recebe lixo doméstico e restos de materiais de construção como madeira, canos de plástico e restos de cerâmica. Desde o início do incêndio essas pessoas vivem soba fumaça e agora elas começaram a adoecer. A Cooperativa do lixão agora luta para conseguir cestas básicas para a população de catadores de recicláveis que não podem mais trabalhar.

Com chamas de mais de dez metros no início do incêndio, o fogo persistiu por quase 24h, levando toda a renda e trabalho dos catadores que agora contam com mais uma campanha de arrecadação de água, comida e medicamentos do Pará Solidário, que mais uma vez arregaça as mangas, sem apoio municipal ou governamental. 

O Corpo de Bombeiros que estava no local na hora do ocorrido não combateu o fogo. Ao ser questionado pela reportagem um dos bombeiros assumiu que não havia nada que pudesse ser feito naquele momento e que a brigada deveria esperar pelo amanhecer. A maior preocupação dos catadores era proteger o galpão da cooperativa onde estão os equipamentos e máquinas utilizadas para selecionar, empacotar e armazenar os recicláveis.

O lixo urbano da capital paraense já é um problema real com várias ramificações a serem examinadas e resolvidas como a coleta em distritos como Icoaraci, onde a mesma não acontece com assiduidade ou sequer padrão, deixando a população do Distrito que faz parte da região metropolitana de Belém, sem o recolhimento nem dos detritos da limpeza das ruas, executada pela prefeitura. 

É possível andar pelo distrito e perceber que em alguns pontos, a cidade de Icoaraci parece abandonada, com grandes quantidades de lixo amontoado em frente às escolas, sujeira retirada das valas e abandonadas em frente às escolas e entulhos abandonados por toda a cidade. Não só Icoaraci fede, mas Belém passou a feder.

Outro grande problema é o Aterro Sanitário de Marituba que insiste em funcionar, comprometendo a saúde da população do entorno do aterro no bairro de Santa Lúcia, em especial os conjuntos habitacionais Albatroz I e Albatroz II onde as pessoas, entre elas, crianças e idosos, adoecem do nada. 

Crianças estão definhando sem acesso à saúde, adultos apresentam quadros de problemas respiratórios sem nunca terem fumado um único cigarro na vida e idosos apresentam problemas de pele, de visão,  cardíacos e respiratórios da mesma forma. 

A licitação para a escolha da empresa que fará o recolhimento do lixo da região metropolitana de Belém não sai do papel e nunca é aprovada para seguir o certame, mas aparentemente, a gestão pífia de Edmilson Rodrigues, através da Secretaria Municipal de Saneamento, conseguiu contornar suas incapacidades convenientes de redigir um documento que não esteja repleto de inconsistências e equívocos jurídicos, para que a concorrência ocorra de acordo com decisão judicial nas últimas semana. A nova empresa fará a coleta e o tratamento do lixo doméstico, além de outros resíduos da RMB.

Enquanto termino este texto, distante 19km do lixão, o cheiro de fumaça invade nosso quarto e minha filha começa a tossir. Estamos no centro de Belém e outras residências são impactadas pela fumaça que ainda é produzida pelo incêndio, mas a única preocupação da elite paraense dos centros é com o incômodo visual que a fumaça sazonal causa em seus familiares.

É preciso que a população privilegiada de Belém e Ananindeua entre na discussão sobre a estrutura do racismo ambiental normalizado pelas gestões municipais que faz com que a população de Águas Lindas, Aurá e entorno, sofram com as condições insalubres. 

Não é normal que às vésperas do Círio de Nazaré, a casa de Plácido receba doações milionárias com água, massagistas, médicos e voluntários para atender ao público de romeiros e enquanto isso crianças, idosos e adultos sofrem do outro lado da cidade com o calor, a sede, a fome e a ausência de ar respirável. 

O faz de conta do estado e município está custando a saúde da população. Do Aurá e do centro. 

*João Paulo Guimarães é fotojornalista e ativista socioambiental como poucos.